Em primeiro lugar, deve-se notar que toda a apresentação desenvolve-se dentro de uma atmosfera intimista. Esta simples opção pela intimidade já introduz o público em um espaço que é drasticamente afetado pelas coordenadas que definem as condições da existência vigentes na modernidade tardia, pósindustrial ou midiática. Pois, como lembra Umberto Galimberti1, o desabamento das barreiras que permitiam distinguir a interioridade da exterioridade tem como resultado a extinção da intimidade, em virtude de sua mera transposição para um meio público que, por princípio, exige uma transparência e uma acessibilidade incompatíveis com a verdadeira intimidade. A conformidade social, exponenciada em aparente paradoxo pela exposição e publicação da vida particular nos meios coletivos de comunicação, promove a conversão da individualidade íntima em imagem publicada. Nessa situação, diz Galimberti, “descobrimos que de íntimo restou somente a dor, a doença, a pobreza, que cada um de nós procura esconder para não ser deixado de lado pelos outros, por eles abandonado. E, assim, exatamente aquilo que teria maior necessidade de comunicação (a dor, a doença, a pobreza) permanece escondido no segredo da solidão, onde não chega nenhuma voz para diluir aquilo que a solidão torna insuportável”2. O que dói silenciosamente no fundo de cada um de nós é sufocado pela recusa obstinada da verdadeira intimidade, que simplesmente se perde quando publicada, por exemplo, em uma “rede social”, em virtude da publicação mesma. E assim, mesmo quando comunicamos um conteúdo privado verdadeiro, mentimos, pois incorremos – sabendo ou não disso – naquelas “conversas insinceras que nada querem saber, absolutamente nada, a respeito da dor, da doença e da pobreza”3, na medida em que, na verdade, apenas desejamos capturar narcisisticamente o olhar e o interesse do outro sobre nós mesmos, fingindo ser dor a dor real – mas denegada - que sentimos. E assim traímos e abandonamos a nossa dor, e com ela a nossa intimidade. Como diz a performer de Correntes e Naufrágios em sua reclamação, transformamo-nos em gigolôs de nós mesmos. No entanto, “o existido continua a doer eternamente”.4
Parece-me que é precisamente aqui que podemos apontar o segredo da comoção causada por Correntes e Naufrágios. Pois, após um início em que o público é recebido de modo acolhedor, leve, alegre, convidado a dialogar com a performer, de forma bem-humorada e descontraída, de repente a apresentação muda de tom. De forma abrupta, sem nenhuma transição que a preparasse (a não ser, talvez, a cena silenciosa inicial ao piano), a atmosfera muda totalmente, e o espectador é capturado para uma outra dimensão. O diálogo com o público é interrompido drasticamente, produzindo-se uma situação forçada de isolamento: o que se segue já não comporta a intervenção do espectador, e isso tem o efeito de enredá-lo no próprio isolamento que é criado a partir de então5. O contraste com a participação descontraída inicial é patente. Paola prega uma peça no espectador: a princípio convidado a ser um participante ativo na cena, abruptamente e de forma quase brutal ele é expulso desta função dialógica e forçado a entrar em uma atmosfera sombria, angustiada, e acompanhar as cenas em silêncio (mas, certamente, com intensa afecção emocional, como o comprovam os testemunhos e mesmo, às vezes, o estupor após a apresentação). Não há mais interação, e sim a exposição, em cenas fortes, de situações opressivas, que simplesmente fazem o espectador mergulhar – sem possibilidade de apelo – nas angústias que assaltam o indivíduo condenado a viver no mundo contemporâneo: impotência, sensação de aprisionamento em um sistema impessoal que dita as condições de sua existência, tortura, sofrimento, medo, fracasso, solidão. Nos termos de Galimberti: o que retorna à cena é a intimidade denegada e incômoda da dor, da doença, da pobreza.
A conformidade social – segredo da felicidade “light” e festiva prometida pela adesão incondicional à norma universal da exposição e publicação – desmorona junto com a sensação de segurança e identidade do sujeito exposto à doída intimidade que lhe restou e da qual ele preferiria se descartar, em nome do reconhecimento, da aceitação e da admiração social, em uma palavra: da identidade coletivamente sancionada. O que a construção de Correntes e Naufrágios assim impõe é a experiência dilacerante da fragmentação que acompanha o isolamento. O prenúncio disso já poderia ser lido na cena inicial: Paola senta-se ao piano e prepara-se para tocar, como em um concerto, mas desiste. O silêncio do instrumento põe em suspenso a sua função usual. Deste modo, o concerto – um evento social, formal, com suas regras de conduta bem definidas (tanto do concertista quanto do público) - é abortado já no início. Quando, em outro momento da apresentação, a performer retorna ao piano, já não se trata de um concerto, mas de uma relação individual e corporal com o instrumento de uma outra natureza, condizente com o isolamento abrupto que se produziu anteriormente.
Pode-se perceber esta mesma lógica no uso de um outro elemento em Correntes e Naufrágios: o quebra-cabeça. Não há a referência a uma totalidade previamente dada, e que se fragmenta apenas para ser seguramente reconstruída, quantas vezes se quiser – o que define o próprio quebra-cabeça. Assim como na cena do piano (a segunda), o uso do quebra-cabeça se dá tendo em vista a pura fragmentação das peças (o plano originário é simplesmente descartado), em sua materialidade, como um conteúdo sem coesão que apenas preenche os espaços de um corpo que, em face desse uso, também se revela suporte fragmentado de uma experiência igualmente fragmentada. Analogamente, no uso do piano, não há uma peça que determine ou circunscreva a interação performer-instrumento – e talvez por isso, na silenciosa cena inicial a performer desista da execução: prenúncio da relação puramente material, de uma interação corpo-instrumento em estado bruto, sem a mediação comunicativa de uma peça codificada previamente concebida. O naufrágio da comunicação convencional – quebra-cabeça, peça musical - expõe uma outra situação: uma desesperada interação fusional com a matéria.
A angústia e o medo presentes nesta forma de relação ficam bem evidentes na cena das beterrabas. O ato de martelar as beterrabas e o manuseio das mesmas subitamente produzem a percepção da íntima proximidade entre o suco “sanguinolento” e o corpo que ele atinge. A personagem é tomada de pavor e tenta se livrar desesperadamente daquele contato-contágio incômodo. Da mesma forma, a angústia do aprisionamento corporal aos objetos ressalta na cena da fita crepe, exponenciando a impossibilidade de falar e de se mover. O que a construção sugere aqui é o naufrágio de uma subjetividade privada das dimensões humanas da liberdade e da expressividade, e que assim se vê lançada regressivamente ao estatuto de mera coisa material – o pesadelo que ronda o sujeito no limiar da era póshumana.
A cena final, em que Paola dança ao som de água corrente, evoca o simbolismo universal da renovação ou regeneração pela água. A experiência de alívio – mesmo que momentâneo, provisório, efêmero – que um banho é capaz de causar talvez seja a única possível para quem sente de fato a opressiva atmosfera criada em Correntes e Naufrágios, espelho impiedoso das condições reais que determinam a existência contemporânea em um mundo que perdeu seu sentido, seu rumo, e que oferece, como duvidoso sucedâneo para tal perda, o mergulho na festa pósmoderna do hiperconsumo, do culto à celebridade e à aparência, do entretenimento universal com os fantásticos gadgets tecnológicos – que seduzem inacreditavelmente a todos, sem distinção de idade, classe social ou gênero -, do hedonismo que não faz concessões a quaisquer outros princípios de vida que não o da satisfação individual.
Correntes e Naufrágios vem arrancar o espectador da confortável posição de comunicação e lançá-lo naquilo que fica oculto, camuflado, reprimido pela ideologia da interação, da transparência, das “redes sociais” da internet: a solidão, o isolamento, a asfixia, a angústia, a ausência de palavras que cerca a região mais íntima de cada um de nós. Não por acaso, uma das indústrias mais lucrativas de nossa época é a dos antidepressivos, que oferecem a alternativa hegemônica à via de entrar em contato com aquilo que no íntimo de cada um não se alinha com a festividade do consumo, do entretenimento, da comunicação aparente. Nesse sentido, Correntes e Naufrágios guarda alguns pontos de contato com uma intervenção psicanalítica, obrigando o espectador a confrontar-se com as dimensões dolorosas de sua verdade pessoal, ativamente reprimidas e desqualificadas pela ideologia dominante no sistema da técnica e do consumo.